***
O Zen tem as suas origens nos ensinamentos de Buda – Gautama Siddharta – que terá nascido no ano de 556 a.C. e falecido em 486.
O Budismo é mais uma filosofia do que religião.
Não admite a existência de uma alma imortal como no Cristianismo e a existência de um Deus omnipotente.
O Budismo ensina que é possível ao homem a libertação do carma e com esta, a libertação do ciclo interminável de renascimentos o que não se trata de um dogma que obste à prática do Zen por quem nele se não reveja.
Existem dois veículos:
O Grande Veículo – “Maiana” – e o Pequeno Veículo – “Hinaiama”.
O Ch´an – chinês – e o Zen – japonês – integram o Grande Veículo. Atente-se que Zen é o nome que o Budismo adoptou no Japão quando para aí foi levado no século XII.
O budismo chinês desenvolveu-se na dinastia T´ang, entre o século VII e X d.C., depois de um monge indiano de nome Bodhidharma, falecido no ano de 534, aí ter chegado. Bodhidharma é considerado o primeiro Patriarca chinês. Hui-K´o foi o segundo e Seng-T´san, falecido em 606, o terceiro – é a ele que se atribui o poema editado infra.
A partir do momento em que foi designado o sexto patriarca começaram a surgir inúmeras divergências na doutrina Zen, com métodos contraditórios, e ensinamentos divergentes na sua essência, nomeadamente os que conduziam os monges pelo caminho da iluminação progressiva ou súbita.
O pai do Zen no Japão foi Yosai falecido no ano de 1215.
O Zen não é uma religião nem propriamente uma filosofia. É uma mundividência alheia ao pensamento dualista ocidental, um “caminho” de libertação, se é que a este se pode aceder por um qualquer trajecto, uma apreensão da realidade tal qual ela é, no seu momento de eternidade: o agora. Efectivamente, o Zen ensina-nos a usufruir do momento presente e de que existe uma realidade subjacente à unidade.
Tenha-se em consideração que os orientais tendem a encarar a intuição, a meditação e a experiência mística como modos válidos de aquisição do conhecimento. Não dependem, como nós ocidentais, do raciocínio e da investigação crítica.
O “Xinxin Ming” é o nome chinês de um poema conhecido como o mais antigo texto Zen, provavelmente escrito pelo Terceiro Patriarca Seng-T´san no século VI. Talvez o mais importante ensinamento escrito de todo o Budismo Zen.
Existem múltiplas traduções e traduções de traduções, seja do texto em chinês seja em japonês, com títulos diferentes, bem como dúvidas quanto ao autor e data do poema.
Na nossa tradução do francês escolhemos como título a “Fé na Mente Verdadeira”. Esta é perfeita e não tem que ser aperfeiçoada, cabendo a cada um de nós obter a libertação do poder latente dessa mesma Mente, que se encontra oculto.
O “Xinxin Ming” baseia-se tal como o Vedanta no ensinamento da não-dualidade e podemos considerá-lo a “alma” do Zen, que nos propõe o “satori”, a iluminação; iluminação que não é considerada o seu fim derradeiro, mas antes o princípio de uma nova vida.
“Para alcançar a iluminação Zen não é necessário abandonar a vida familiar, o emprego, tornar-se vegetariano, praticar o ascetismo, fugir para um lugar tranquilo e depois entrar numa gruta fantasmagórica do Zen morto para entreter imaginações subjectivas” – Mestre Dahui.
Podemos ilustrar o Zen com uma história que se diz ter acontecido no Pico do Abutre:
Conta-se que Buda terá um dia mostrado aos seus discípulos uma flor extremamente bela, pedindo-lhes que dissessem algo a seu respeito.
Depois de a observarem em silêncio durante alguns minutos, um dissertou longamente sobre a sua beleza, comparando-a à Criação, outro compôs um poema e o terceiro uma parábola, cada um mais preocupado em agradar pela eloquência do que propriamente pela satisfação contemplativa.
Mahakashyap olhou-a, sorriu e não disse nada.
Ananda, primo e discípulo de Buda, que era quem tomava notas das palavras do Iluminado, intuiu que Mahakashyap teria entendido o gesto do Mestre e questionou-o quanto ao seu significado.
Ele limitou-se a mostrar-lhe uma flor e nada disse, e Ananda entendeu.
Sem que tenhamos uma interpretação da história, conseguimos reter que a iluminação não depende de qualquer texto dito sagrado nem poderá nunca ser expressa por palavras.
O conhecimento Zen foi muitas vezes transmitido por intermédio das suas histórias. Aprender o Zen pela prática do Zen, reflectida nas histórias de Mestres, nas vivências reais dos seus praticantes é sabedoria, contrária à estéril erudição.
Nas palavras de Ch´ing-yuan:
“Antes de ter estudado o Zen durante trinta anos, via as montanhas como montanhas, e as águas como as águas. Quando cheguei a um conhecimento mais íntimo, alcancei o ponto em que vi que as montanhas não são montanhas, e as águas não são águas. Mas agora que alcancei a sua essência real, estou tranquilo. Porque é justo que eu veja as montanhas como montanhas, mais uma vez as águas como águas.”
Lien Tzu, foi discípulo do Mestre Lao Chang, relatando sucintamente a sua aprendizagem:
“Depois de o ter servido pelo espaço de três anos, a minha mente não se atrevia a reflectir sobre o certo e o errado, os meus lábios não se atreviam a falar de lucros e de perdas. Então, pela primeira vez, o meu Mestre concedeu-me um olhar – e isso foi tudo.
Ao fim de cinco anos houvera uma mudança; a minha mente reflectia sobre o certo e o errado, e os meus lábios falavam de lucros e perdas. Então pela primeira vez, afrouxou a severidade do seu semblante e sorriu.
Ao fim de sete anos, houve outra mudança. Deixei que a minha mente pensasse o que lhe aprouvesse, e ela deixou de se preocupar com o certo e o errado. Deixei que os meus lábios pronunciassem o que lhes apetecesse, mas eles deixaram de falar em lucros e perdas. Então, finalmente, o meu Mestre conduziu-me a um lugar sobre a esteira, a seu lado.
Ao fim de nove anos, a minha mente soltou as rédeas às suas reflexões, a minha boca deu livre passagem ao seu discurso. De certo e errado, de lucros e perdas, não tinha eu conhecimento, tanto no que a mim se referia como no que dizia respeito aos outros. O interno e o externo tinham-se fundido na unidade. Daí em diante, não havia já distinção entre olho e ouvido, ouvido e nariz, nariz e boca: todos eram o mesmo. A minha mente estava gelada, o meu corpo dissolvido, carne e ossos fundidos numa só substância. Não tinha a menor consciência daquilo sobre que o meu corpo repousava, ou do que havia sobre os meus pés. Era transportado para um lado e outro, na asa do vento, como palha seca ou folhas caindo de uma árvore. Em verdade, não sabia se o vento me cavalgava ou se era eu que cavalgava o vento.”
Alguns Mestres encararam o Zen de uma forma aparentemente simples.
Lin-Chi disse:
“Quando chegar a altura de te vestires, veste-te. Quando tiveres de andar, anda. Não tenhas a preocupação de te tornar num Buda: sê apenas tu mesmo.”
Também Kokusen se referia ao Zen “como o acto de empilhar pedras e recolher lixo.”
Mestre Yuansou disse: “No Budismo não existe nada que exiga esforço. Tudo nele é normal. Vesti-vos para vos proteger do frio e comei para não ter fome. E é tudo.”
Um discípulo perguntou a um Mestre Zen:
- Qual foi o teu caminho para a Verdade, para o Absoluto?
- Quando como, como; quando repouso, repouso - respondeu o Mestre.
- Mas, Mestre, isso todos nós fazemos, mesmo os que na vida não têm aspirações para além das que os bens materiais alimentam.
- Não, não é como dizes. Essa gente de que falas, quando come tem o seu espírito absorvido por múltiplas questões, por futilidades, e quando dorme, vagueiam no seu cérebro universos imaginários. Por isso, quando comem não se limitam a comer e quando dormem não se limitam a dormir.
Eu, quando estou a comer, estou realmente a comer e quando durmo estou realmente a dormir.
É esse o meu caminho para a Verdade – finalizou o Mestre.
Mestre Foyan costumava perguntar:
“Porque é que vos dirigis a um centro Zen? Deveis seguir a vossa vida por vós próprios sem ouvir o que os outros dizem.”
Não há pois necessidade de rituais para dar os primeiros passos no Zen, muito especialmente os dos mosteiros. Os seus horários rígidos, a sua disciplina, constituem-se como rotina e sofrimento, que por sua vez são a causa directa de um fracassado dispêndio de energia. Os “certificados de iluminação” são papéis levados pelo vento e que devem ser consumidos pelo fogo. A iluminação não se certifica. O “zazen” é uma verdadeira tolice, uma infantilidade. Uma outra perda de energia.
Para Mestre Foyan o “Budismo é um ensinamento muito fácil de compreender e que relativamente aos outros ensinamentos poupa muita energia. No entanto, os mestres antigos contactavam amiúde com pessoas que se encontravam completamente perdidas, tendo-lhes dito para meditar tranquilamente. Na altura este foi um bom conselho, mas os meditantes não compreenderam os motivos que levaram os mestres a fazê-lo. Assim, fecharam os olhos, anularam o corpo e a mente e sentaram-se imóveis à espera da iluminação.
É precisamente esta a tolice de que vos falei.”
Mesmo considerando que a iluminação não depende de qualquer texto dito sagrado nem poderá nunca ser expressa por palavras, constatamos que todo o Zen está contido no seu primeiro escrito: o “Xinxin Ming”.
Quem o entender e praticar estará a um passo da iluminação.
Como disse o Sexto Patriarca Zen: “Aquilo que vos digo não é nenhum segredo. O segredo está dentro de vós”.
Não tendes tempo a perder.
O Zen é a essência do Budismo
A liberdade interior é a essência do Zen
A FÉ NA MENTE VERDADEIRA – XINXIN MING
Não há nada de complicado na grande Via,
Mas é essencial evitar preferir.
Libertos do amor e do ódio
Ela aparecerá com todo o seu esplendor.
Se nos afastarmos dela pela espessura de um cabelo
Será como um imenso precipício entre o céu e a terra.
Se a quisermos atingir
Não podemos estar nem a favor nem contra nada.
O conflito entre o a favor e o contra
É a autêntica moléstia da alma.
Se não divisarmos a essência das coisas
Afadigar-nos-emos em vão para serenar o nosso espírito.
Tão perfeita como a vastidão do espaço,
Nada lhe falta, nada está fora dela.
Acolhendo e repelindo as coisas
Não somos como devemos ser.
Não intentemos alcançar o mundo submetido à causalidade.
Não adiramos a uma inanidade que exclua os fenómenos.
Se o espírito permanecer em paz no Um
As visões dualistas irão desaparecer por si próprias.
Quando a actividade pára e a passividade impera,
Esta, por sua vez, torna-se mais activa.
Permanecendo no movimento ou na quietude
Como é que poderemos conhecer o Um?
Se não compreendermos a unidade da Via
O movimento e a quietude irão conduzir-nos ao fracasso.
Se nos apartarmos do fenómeno, ele absorver-nos-á,
Se perseguirmos o vazio, virar-lhe-emos as costas.
Quanto mais falarmos e racionalizarmos,
Mais nos desviaremos da Via.
Suprimindo a linguagem e a reflexão
Não existirá lugar algum onde não possamos ir.
Regressando à raiz obteremos o sentido,
Correndo atrás das aparências afastar-nos-emos do princípio.
Se por um breve instante nos olharmos introspectivamente
Ultrapassaremos o vazio das coisas deste mundo.
Se este mundo nos parece sujeito a transformações
É consequência das nossas visões falsas.
Não é necessário buscar a verdade
Basta terminar com as falsas visões.
Não nos apeguemos às visões dualistas,
Evitemos com todo o cuidado perfilhá-las.
Caso exista o menor vestígio do sim e do não
O espírito perder-se-á num labirinto de complicações.
A dualidade existe como consequência da unidade,
Mas não nos apeguemos a essa unidade.
Quando o espírito se unifica sem se apegar ao Um,
As dez mil coisas são inofensivas.
Se uma coisa não nos ofender é uma coisa inexistente,
Se nada se produzir não haverá espírito.
O sujeito desaparece atrás do objecto.
O objecto desaparece com o sujeito.
O objecto é pelo sujeito que é objecto.
O sujeito é pelo objecto que é sujeito.
Se desejarmos saber o que é que eles são na sua ilusória dualidade,
Saberemos que não são nada para além do que um vazio.
Neste vazio único os dois identificam-se
E cada um contém em si as dez mil coisas.
Não devemos fazer distinção entre o subtil e o grosseiro.
Como poderemos tomar partido disto contra aquilo?
A essência da grande Via é vasta,
Nela não há nada fácil nem difícil.
As visões mesquinhas são hesitantes.
Quanto mais depressa pensamos que vamos mais lentamente o fazemos.
Apegando-nos à grande Via aniquilamos toda a dimensão
E comprometemo-nos com um caminho sem saída.
Se a deixarmos ir as coisas seguirão a sua própria natureza.
Em essência nada se move nem permanece no mesmo lugar.
Obedecendo à natureza das coisas estaremos de acordo com a Via,
Estaremos livres e seremos libertados de todo o tormento.
Quando os nossos pensamentos estão acorrentados viramos as costas à verdade
E mergulhamos no desassossego.
O desassossego fatiga a alma.
Para quê fugir disto e acolher aquilo?
Se desejarmos adoptar o trilho do Veículo Único
Não poderemos amparar nenhum preconceito contra os objectos dos seis sentidos.
Quando deixarmos de os detestar
Então atingiremos a iluminação.
O sábio perdura sem fazer nada,
O louco enreda-se a si mesmo.
As coisas não conhecem distinções,
Nascem do nosso apego.
Apoderarmo-nos do seu espírito para nos servirmos dele
Não será o mais grave de todos os desatinos?
A ilusão produz quer a serenidade quer o transtorno.
A iluminação destrói todo o apego bem como toda a aversão.
Todas as oposições
São fruto das nossas reflexões.
Visões em sonho, flores do ar,
Porque é que nos devemos dar ao trabalho de as proteger?
O ganho e a perda, o verdadeiro e o falso,
Que desapareçam uma vez por todas.
Se o olho não dorme,
Os sonhos irão desvanecer-se por si próprios.
Se o espírito não se perder nas diversidades
As dez mil coisas já não serão mais do que uma identidade única.
Quando compreendermos o mistério das coisas na sua identidade única
Esqueceremos o mundo da causalidade.
Quando todas as coisas forem consideradas com equanimidade
Regressarão à sua natureza original.
Não procuremos o porquê das coisas
Porque iremos precipitar-nos no domínio das comparações.
Quando a paragem se põe em movimento deixa de haver movimento,
Quando o movimento pára, deixa de haver paragem.
As fronteiras do derradeiro
Não são guardadas nem por leis nem por regulamentos.
Se o espírito estiver harmoniosamente unido à identidade,
Toda a actividade se apaziguará nele.
Quando afastarmos as dúvidas,
A fé verdadeira reaparecerá confirmada e reerguida.
Já nada permanece,
Nada de que seja necessário recordarmo-nos.
Tudo é vazio, luminoso e radiante por si próprio.
Não fatiguemos as nossas forças espirituais.
O Absoluto não é um lugar mensurável pelo pensamento,
O conhecimento não o pode sondar.
No mundo da verdadeira identidade
Não existe outrem nem si mesmo.
Se desejarmos adequar-nos com ela
Bastar-nos-á dizer: não-dualidade.
Na não-dualidade todas as coisas são idênticas,
Nada há que não esteja contido nela.
Os sábios em toda a parte
Chegaram a esse princípio primordial.
O princípio não tem pressa nem se atrasa.
Um instante é semelhante a milhares de anos,
Nem presente, nem ausente,
No entanto, em toda a parte diante dos nossos olhos.
O infinitamente pequeno é como o infinitamente grande,
No esquecimento total dos objectos.
O infinitamente grande é igual ao infinitamente pequeno,
Quando o olhar já não se apercebe mais de limites.
A existência é a não-existência.
A não-existência é a existência.
Enquanto o não compreendermos
A nossa situação permanecerá insustentável.
Uma coisa é ao mesmo tempo todas as coisas.
Todas as coisas não são senão uma coisa.
Se pudermos compreender isto
Será inútil atormentar-nos quanto ao conhecimento perfeito.
O espírito da fé é não-dualista.
O que é dualista não é o espírito da fé.
Aqui as vias da linguagem param
Pois não existe nem passado, nem presente, nem futuro.
***