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Se o sofrimento psicológico deve ser escutado, também a dor física deve ser cuidadosamente percepcionada sem que o pensamento interfira. O envolvimento psicológico com a sua intensidade, localização e desconforto apenas a fará agravar.
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As nossas vidas estão vazias de paz e de amor e plenas de tormentos. Um sofrimento psicológico atroz que consome todas as nossas energias.
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Onde há apego nasce o sofrimento. Onde há sofrimento não pode existir afeição e amor.
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Observar o sofrimento, o medo, ou qualquer problema é fazê-lo cessar, e no seu findar está o Amor de amplo seio.
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Descobrir a causalidade do medo não nos livra dele. Sabemos que reagimos de uma determinada forma a um certo objecto ou situação, mas a revelação do incidente traumático não resolve o problema, pode minimizá-lo por intermédio da racionalização, mas não o extingue.
Só a sua observação sem recurso ao pensamento o pode fazer cessar.
Temos de o escutar em todas as suas peculiaridades sem o comparar ou interpretar, alheios ao fenómeno do tempo.
A aprendizagem acerca do medo é obtida através da auto-observação, não de estudos psicológicos ou das experiências pessoais de alguns.
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O autoconhecimento, ao conduzir-nos à profundidade do ser, destrói os deuses dos homens, as religiões, as filosofias, os partidarismos. Mostra a sua futilidade e origem, que se estriba no medo de estar só e da morte.
Leva à extinção dos condicionamentos. Esta, à liberdade, que por sua vez conduz à criação explosiva, a que só as crianças e os puros têm acesso.
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A nossa civilização criou conceitos irreais e ilusórios de amor, fruto da actividade mental. Nesta perspectiva ele é prazer, desejo, medo, ódio, ciúme, posse, ambição, apego, dominação, uma longa e pesada cadeia de argolas de aço que em vez de unir, dividem. É a angústia, o iminente sentimento de perda da aquisição passageira. É triste e contente, extasiante e depressivo, riso e lágrimas, memória do bom e do mau, do agradável e do desagradável. Na maior parte das vezes, dor psicológica.
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Liberta os outros para que sejam quem querem ser, para serem quem são.
Liberta-te para seres quem és.
Ama e sê quem és. O amor dispensa os preceitos éticos.
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O amor é sensibilidade e paixão, que incide sobre pessoas e coisas, observadas como são, indiscriminadamente, de forma espontânea e gratuita.
Não é exclusão.
É uma bênção derramada sobre a totalidade da vida, nascida do silêncio, sem os limites do espaço-tempo.
É ser feliz, mesmo sem o concurso dos outros.
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Chove lá fora. O vento com rajadas violentas fustiga as portadas, transportando as gotas de chuva a uma velocidade impressionante. O som do embate é um crepitar metálico.
A intensidade da tempestade varia. As previsões são más, os serviços meteorológicos e a protecção civil advertem para uma madrugada de tormenta.
Não ouço o vento e a chuva, nem vejo a beleza do temporal. O meu pensamento absorve-me. Receio que a água inunde o sótão, que qualquer objecto impulsionado pelos ares parta as vidraças, que as telhas possam ser arrancadas. Temo a calamidade, a destruição parcial da casa.
Cada rajada é uma aflição, cada bátega de água é angustiante.
Este medo que não é verdadeiramente real, que é pensamento, não me permite observar a tempestade tal qual é.
Ao perceber o mecanismo do pensamento, o cérebro silenciou e o vento e a chuva deixaram gradualmente de ser temor e ansiedade para serem chuva e vento em toda a sua plenitude e beleza.
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Há momentos da nossa existência, em que a contemplação de um pico nevado, de uma torrente de águas cristalinas, de um rosto de criança produz a ausência do “eu”.
Nesse estado de quietude onde se transcende o conhecido para absorver o sempre novo, há sensibilidade, beleza.
Para que esta se manifeste não podemos existir como individualidade.
O “eu” é um agente infeccioso, uma doença que se transmite ao que observamos contaminando a sua essência.
Quando olhamos uma árvore, uma flor, sem a presença do “eu”, libertamo-nos das teias do espaço-tempo e penetramos na eternidade.
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É pela meditação, pela observação pura e simples, que podemos descobrir o que está para além do pensamento, do espaço-tempo. É o único modo.
A razão só tem tornado complexo o que é simples ao amontoar século a século teorias e doutrinas contraditórias e paradoxais.
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Meditar é ver, ouvir, sentir, cheirar, saborear as coisas como elas são.
Meditar é atenção global, não é concentração, fruto de exercícios mentais obnubiladores.
Ouço o canto dos pássaros, o vento na vegetação, a água corrente, os que me falam, vejo as nuvens no céu, o despontar do Sol, o brilho das pedras humedecidas pelo orvalho da manhã, os rostos dos camponeses. Observo os meus pensamentos e toda a minha consciência descendo até aos mais recônditos e obscuros lugares. Saboreio os frutos e demais alimentos, inalo os mais variados aromas.
Sentir o vento, a chuva e o sol no rosto e nas espáduas no seio da natureza sem o alvoroço do raciocínio é meditação.
Tudo de uma vez só, de forma total, como a própria vida.
Com esta atenção vigilante, que é sensibilidade à existência, o pensamento silencia-se.
A meditação, para além de pressupor autoconhecimento, pressupõe também isenção de condicionamentos. A observação do pensamento, de todos os seus subtis movimentos e de tudo o que nos rodeia, sem comparação ou julgamento.
Não implica controlo, mas atenção, que não desvirtua a realidade do que é observado.
A meditação começa com o autoconhecimento. Temos de observar todos os nossos pensamentos, emoções, sentimentos. Esta vigilância levará ao silêncio. Neste, o inconsciente projecta sugestões, carências, o que conduz ao conhecimento do indivíduo na sua integralidade.
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Vou no comboio. Estou atento às sensações corporais, à conversa dos passageiros ao meu lado e ao rumor da fala dos mais afastados, ao ruído das rodas que deslizam nos carris, ao deslocamento do vento. Vejo as hortas, as árvores, os túneis, as casas, as pessoas e seu afã, a névoa que abraça os vales, os animais que pastam. Estou sensível aos balanços e impressões que corporalmente me causam, à alteração dos sons, ao apito, aos múltiplos verdes e ocres, às nuvens escuras no céu, às gotas de chuva na janela. Observo as expressões dos outros viajantes e os meus pensamentos quando surgem.
Que quietude advém de tudo isto.
E quanto maior a atenção, maior a quietude.
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Concentração é esforço dirigido. É a tentativa de aquietar a mente com as suas inúmeras tagarelices, pela repressão e pela violência.
É conflito, na medida em que tentamos iludir a distracção que retorna sempre, de forma mais ou menos insistente.
Estar atento, ao contrário, não é esforçar-se nem usar desnecessariamente a memória, esgotando o cérebro, extirpando-lhe a vitalidade e energia tão necessárias à existência quotidiana. É poisar a mente, os sentidos sobre nós e tudo o que nos circunda, é vigilância passiva integral.
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Quando há atenção, não há eu, nem o outro, não há observador e objecto observado, porque o pensamento se dissipa.
Se realmente atentos, o pensamento cessa.
Observamos um milhafre na sua caçada implacável, o voo gracioso de uma ave, o olhar terno de uma criança, a passagem de um comboio na gare, um deslumbrante pôr-do-sol e ficamos apenas com o facto. Compreendemos o que se está a passar imediatamente. Não há pensamento, mas compreendemos. O cérebro está tranquilo, sem tagarelar, pleno de energia, e entende sem pensar.
O mesmo se passa com qualquer problema. O entendimento é libertador.
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Quando observamos o pensamento e o seu movimento, numa vigilância passiva, sem condenar, justificar, interpretar, sem fugir dele recalcando-o ou sublimando-o, este tende a parar.
E, nesse estado de escuta passiva, se observamos o que nos rodeia, sem a sua contaminação, transcendemos o espaço-tempo, porque só existe o instante, o agora.
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A aprendizagem psicológica não passa pelo estudo de livros, pela troca de conhecimentos, mas pela observação dos nossos pensamentos e acções.
Não é isso que fazemos. Somos cidadãos de segunda sempre dispostos a redizer, a citar as autoridades na matéria, incapazes de aprender a partir do nosso espírito.
Não nos esforçamos seriamente viajando no mais recôndito do nosso ser. Aproveitamos as viagens dos outros, que na maior parte das vezes se limitaram a viajar em viagens alheias e assim sucessivamente.
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Quando damos nome a uma coisa, não a definimos, muito menos descortinamos a sua essência, que é o que faz que um ser ou objecto sejam uma coisa e não outra diversa ou semelhante.
As palavras não são as coisas. Porventura, não terão um significado, mas vários usos.
A palavra rotula o que vemos e faz com que os acontecimentos e circunstâncias da vida quotidiana não sejam originais e extraordinários. Ver não é formar juízos ou opiniões, analisar, imaginar ou interpretar; ver é observar sem que se recorra ao pensamento destruidor, é galgar as barreiras do espaço-tempo de um modo espontâneo e instantâneo, que nunca se reitera para que o novel possa florir e frutificar em cada momento.
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A lagoa que agora observo tem o seu ser próprio independente de todas as outras que conheço. Para a contemplar plenamente tenho de morrer para as imagens que dela retive noutros momentos e para as de outras lagoas que porventura já tenha visto, porque é nova, sempre nova, a cada instante.
Se pretendermos reter em memória o prazer do que vemos, escutamos, sentimos, acabamos por multiplicar os desejos. A vontade de repetir um prazer gera ansiedade, sofrimento.
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Quando vemos alguém ou alguma coisa, memorizamos essa imagem, normalmente carregada de juízos de valor ou desvalor.
O pinheiro do meu jardim é alto, imponente, com um tronco grosso e bem torneado. A casa, a mulher, os filhos, os conhecidos, tudo o que tocamos, de todos formamos imagens. Passo pelo pinheiro, olho a minha casa, a minha mulher, já não os vejo como são nesse preciso momento, mas antes a imagem que deles tenho ainda que ligeiramente alterada por qualquer circunstância chamativa.
Olhar as coisas, recorrendo mentalmente a comparações, inviabiliza a contemplação.
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Precisamos de um cérebro lúcido, vivo. Para isso concorre a observação com o concomitante desenvolvimento dos sentidos, a percepção não interpretativa do desespero, da angústia, do desejo, em suma do sofrimento.
A percepção situa-se entre a sensação e o conhecimento. Saio à rua no Inverno com temperatura negativa e ventos fortes. Tenho a imediata sensação do frio. A esta sucede-se a percepção do facto de que tenho frio. Depois vem o conhecimento de que estou na Estação mais fria do ano, que os cumes da serra estão gelados, e como tal, o ar frio desce à terra chã, onde os ventos vindos de Espanha fazem o frio parecer mais frio.
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O nosso cérebro está contaminado pela educação, religiões, autoridades políticas, administrativas e judiciárias, pelos conhecimentos que vamos acumulando na mira da perfeição. No entanto, não é ela visível no horizonte. Há apenas um mar de limitações na direcção da miragem do infinito. Como somos tolos e incapazes não obstante pisemos altivamente a rosa-dos-ventos na margem do rio, invocando descobrimentos, explorações, vitórias bélicas. A história da humanidade é um desfilar de agressões, crueldades, mais guerras do que anos, hipocrisias, cinismo, falsa modéstia, autocaridade, corrupção, aproveitamento próprio, salpicada de breves e esporádicos momentos de verdadeira compaixão, em que alguns homens, raros como parece convir a este planeta de predadores, purificados da avidez, da inveja e da ambição, souberam na plenitude do auto-esquecimento espontâneo, derramar indiscriminada e gratuitamente o seu olhar nos outros.
Pelo cérebro reflectimos, reconhecemos o prazer e o sofrimento, a morte e a vida, vemos o mundo como um outro relativamente a nós, o que implica o reconhecimento de cada um como “eu”. Pelo cérebro, extorquimos, matamos, violamos, mentimos, enganamos. Pelo cérebro, damos esmolas, acarinhamos os necessitados. Pelo cérebro construímos hospitais, abrigos, tanques, bombas e escolas. Pelo cérebro estamos. Pelo cérebro somos; nós, apenas nós, inseguros, indefesos fóbicos de neuroses ancestrais. Por isso, somos isso, que nem isso é, por não sabermos quem somos. Só quando não somos, somos todas as coisas. Quando não somos, o embrião da vigilância estremece, desperta, fica alerta.
Esta vigilância passa pelo renascer dos sentidos para uma existência intensa, visão purificada das coisas, escutar límpido dos sons e do silêncio, na ausência possível do intelecto. Mesmo que a filosofia seja um acto de pesquisa desinteressada, liberto da tradição, de qualquer crença, de qualquer ideia e costume, não deixa de conter em si as limitações do seu único guia que é a razão e da própria matéria; o pensamento é matéria e nós transformamo-lo no que queremos, coisa horrenda ou bela, justa ou imoral, feliz ou sofrível, verdade ou não. O homem pode procurar a verdade para além das aparências, do estabelecido, mas quanto mais energia consome nessa busca, mais longe fica do objectivo. É como uma embarcação a navegar num planeta onde não haja em nenhum dos seus pontos terra ou algo que não seja oceano; nunca encontra destino, ainda que defina meticulosamente um rumo ou percorra todos os possíveis. Muitos são os candidatos a capitanear esta nau pelas águas da desesperança, por tormentos nunca sonhados, mas a ilusão aniquila a realidade e o desejo a verdade, que é só uma: não há caminho..., não há caminho...
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Vivemos na ilusão de que necessitamos dos outros e da sua aprovação para sermos felizes. A felicidade não advém de qualquer relação, mas do nosso interior.
Está em nós. Procurá-la no meio envolvente é o mesmo que pescar num lago seco. As mudanças de situação e a satisfação dos desejos são panaceias temporárias.
Está no que sou, não no que tenho ou no que quero vir a ser. Somos quem somos, e se virmos quem somos a espiritualidade manifesta-se e inicia-se uma modificação radical e sem esforço do que é.
É bom viver sem mais. Não querer nada, não querer ser nada.
A ataraxia, tranquilidade do espírito, não deriva do conhecimento ou do esforço para atingir a sabedoria. Deriva da ausência de pensamento.
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Só conhecemos um tipo de paz: a que surge esporadicamente após desassossego emocional. E mesmo esta é relativa. Depois da tempestade o sentido da bonança é exaltado, na extinção total ou parcial da dor há um prazer sobrevalorizado.
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A nossa existência é enformada por múltiplos medos. Medo das doenças, da dor, da pobreza, de perder os entes queridos, de não ter prestígio, de não encontrar um sentido para a vida, medo de estar só, medo das multidões, de exames, de entrevistas, de não agradar, da guerra, de ter um acidente, de morrer e o medo do próprio medo.
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Pela memória recuamos ao passado.
O eterno agora não é experimentado como o que passa, mas como algo que é desde sempre e o será no porvir.
Onde há silêncio não há passado, presente ou futuro, não há tempo.
Na atenção não há tempo, mas um estado de acção altamente sensível na sua intemporalidade.
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Desejo e amor caminham de costas voltadas um para o outro.
Não ter ambições nem desejos é um modo de solidão e solidariedade.
Se morremos para o passado sem pretender a repetição de experiências agradáveis haverá júbilo nos nossos corações.
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Quanto maior o progresso, maior o número de desejos. Quanto maior o número de desejos, maior o sofrimento, enquanto não se satisfazem e depois de satisfeitos.
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O autoconhecimento leva à quietude da mente, uma quietude sem motivo. Quanto mais quieta, mais se manifestam as camadas profundas da consciência, levando à compreensão total do nosso ser.
No autoconhecimento produtivo, em que a mente silencia as correntes do pensamento, a rememoração é espontânea, por ser a sua própria causa e estar isenta de condições, não havendo assim que provocar a anamnese.
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A ânsia de preenchimento é fonte de dor. A necessidade de ser preciso e perfeito é doentia. Apenas o hábito é passível de aperfeiçoamento.
Ser o que não se é, é hipocrisia, fuga à realidade.
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Há o conhecimento que incide sobre objectos do exterior e o que se debruça sobre os pensamentos, sentimentos e fenómenos vegetativos internos. Quando escuto o pensamento não necessito de ficcionar qualquer separação entre o ego e uma qualquer outra entidade, tal como o “Eu superior” a agir a título de observador. Observador e observado são uma única pessoa.
A introspecção, que é análise realizada pelo próprio indivíduo relativamente ao conteúdo da sua consciência, é perniciosa por separar o observador do observado. A análise decompõe o todo no que consideramos os seus elementos e destrói o indecomponível.
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Somos quem somos e nessa descoberta fundamental que envolve o desvendar da estrutura da consciência e a percepção da efemeridade das nossas realizações, da frustração resultante da não satisfação dos desejos, dos caminhos do prazer e do sofrimento, estaremos a modificar-nos, sem saber que o fazemos ou sem querermos que tal aconteça.
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Estamos habituados a divagar mantendo a mente ocupada com ninharias, obsessões, fantasias, projectos e recriminações, sem que tenhamos viva consciência disso. Essa turbulência mental envenena a nossa existência, mas nada fazemos para a fazer cessar, bem pelo contrário, alimentamo-la abundantemente como fazemos com o fogo no Inverno rigoroso.
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O estado de vigilância permanente não é fácil. É algo que se vai construindo até que se torne numa actividade mecânica como o respirar. No princípio pode parecer uma tarefa espinhosa. Mas é com um espinho, que da carne se retira outro espinho, e quando este for extraído, rejeitam-se os dois.
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Ouvir o sofrimento é levá-lo às últimas consequências, deixar que se manifeste na sua totalidade, não cerceando o seu movimento mental próprio, as questões e conclusões a que conduz.
Se lhe estivermos atentos, ou seja, se o olharmos integralmente em toda a sua complexidade sem que o pensamento se imiscua nessa atitude, percebemos que esse sofrimento é criado e sentido por nós, que não é diferente de nós, e sem que o queiramos reprimir, dominar ou controlar, ele cessa, surgindo a paz, o amor, a sabedoria.
É fundamental ouvi-lo, compreendendo a efemeridade da sua existência, que depende apenas do pensamento, suas manhas e artifícios.
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A paz não pode florir enquanto vicejarem os nossos condicionamentos. Somos o resultado de séculos de restrições e conceptualização ético-religiosa, da educação que recebemos, de normas sócio-jurídicas, das nossas experiências. Enquanto os condicionamentos não forem destruídos a felicidade não se pode manifestar, já que a existência daqueles é causa determinante do sofrimento psicológico.
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A ambição, a ânsia de prestígio, geram o sofrimento. Não nos deixam ser. Agitam-nos, inquietam-nos e impulsionam-nos para a contradição do vir a ser. Só aquele que é, vive. O que quer ser algo fica enredado nas malhas da dor.
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Olho para uma mulher. Contemplo um rosto, lábios carnudos, olhos rasgados de longas pestanas, um sorriso aberto de dentes alvos contrastando com o negro dos cabelos, seios firmes, linhas onduladas e insinuantes de corpo em gracioso movimento.
Esta a resposta sensorial ao objecto da visão, o que é perfeitamente natural.
Depois entra em acção o pensamento. Imagino-me com ela, beijando-a, acariciando-a, consumando o acto.
É assim que floresce o desejo, impulso premente, em regra prazer originário da actividade mental.
Dizem que temos de nos libertar dele, controlando-o ou destruindo-o. Mas quanto maior o esforço nessa direcção mais o consolidamos. Vejam as inglórias práticas de sacerdotes e monges, que acabam por aniquilar a beleza, o amor, reforçando os pensamentos “obscenos” e favorecendo práticas “aberrantes”.
Não se pode terminar com os desejos sem mais, reprimindo-os. Só a escuta passiva os pode fazer cessar. Alguns – os afectivos – são mais prementes e quando têm uma componente orgânica, são extremamente insistentes.
O desejo é um movimento emocional que se apodera da mente de um sujeito por atracção de um determinado objecto. É mais do que necessidade, já que admite de modo constante mecanismos substitutivos e tem a avidez de não se deixar saciar.
É em essência infinito e mesmo os que apregoam a sua destruição, desejam: o Reino dos Céus, o Nirvana.
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O paraíso e o inferno são criações de mentes aturdidas. Somos nós que os transportamos connosco, sendo respectivamente a ausência e a existência de pensamentos.
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Quando o pensamento cessa, o “eu” desaparece, deixamos de existir e nesse estado magnífico sem sofrimento passa a existir a Verdade, a Beleza, o Amor. Só há perturbação onde existe o “ego”, que é sucessão de pensamentos. Estes incomodam tanto como o brinquedo que a criança sabe que vai receber no dia seguinte e a impede de adormecer.
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O espanto do filósofo perante o mundo é destruído pela cogitação.
O universo tem os seus limites no espaço-tempo, é divisível em partes, ou até ao infinito?
Há uma liberdade moral ou o conhecimento das causas implica obrigatoriamente o do seu efeito?
Há um “ser” necessário ou apenas entidades contingentes sujeitas a um porvir imprevisível?
O pensamento não pode atingir uma verdade geral. Em primeiro lugar porque é limitado. Depois, porque qualquer atitude que assuma um juízo como verdadeiro é absurda face à inexistência de um critério único de certeza.
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Os homens convencem-se até ao momento da morte que o sentido da vida é o “ter”. São como crianças criadas no meio de lobos. Nunca descobrem que podem andar de pé e resignam-se a caminhar em quatro patas.
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Um único e acidental momento de pânico mostra-nos imediatamente a precariedade e instabilidade da existência. É susceptível de destruir no homem toda a sua aparente grandeza, projectos, ilusões, desejos e alegrias.
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Se o homem estivesse certo da imortalidade da “alma dos justos” ou da sua sobrevivência temporária à morte, proporcionalmente ao mérito das acções e intenções, o mundo seria totalmente diferente. O egoísmo, materialismo, guerra, fome e violência, seriam excepções e não regras.
A sua essência é até certo ponto o interesse próprio.
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Vivemos em perpétua insegurança porque não somos como os pássaros do céu ou as flores do campo. A insegurança é pensamento e só existe enquanto este existir e na sua dependência.
É sábio quem sente a efemeridade.
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As agressões do meio familiar e social desencadeiam excitações emocionais que têm de ser imediatamente descarregadas sob pena de provocarem perturbações duradouras. Não podemos viver em paz, se os nossos corações estão infectados por insultos e ofensas.
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É preciso dizer sim, quando o sim se impõe e não quando o não se impõe, mesmo que isso faça perigar a nossa comodidade, estabilidade ou até a própria vida.
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Estar desacompanhado é o princípio da libertação. É fantástico não contar com nada nem com ninguém para enfrentar uma crise, resolver um problema, ultrapassar um obstáculo.
Numa primeira observação, parecemos nascer para a família, para a sociedade. Mas, nascemos para nós e morremos sozinhos.
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Para os materialistas não existe outra realidade para além da matéria e o pensamento resulta dela.
No entanto, os arbustos e pedras que vejo reflectidos nas águas do lago são reais. Real o objecto, real o reflexo. Real a árvore, real a sua sombra.
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Olhos, ouvidos, nariz, boca e mãos são os instrumentos que conduzem à realidade. À nossa realidade, percepcionada parcelarmente por via das limitações impostas pelos nossos sentidos.
O mundo não tem uma existência absoluta, tal como o vemos e sentimos. Existe em relação com a nossa mente. Se tivéssemos mais um sentido aparecer-nos-ia duma forma totalmente diferente.
Dêem-me mais um sentido e transformarei o universo, farei cair filosofias, destruirei crenças.
No entanto, quando não há “eu”, a Realidade é o que é: Verdade, Beleza, Paixão, Amor.
Quando não somos isto ou aquilo, somos todas as coisas.
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O homem para além de estúpido, é o único ser vivo na superfície terrestre que necessita de trabalhar, porquanto na sua crassa boçalidade inventou o trabalho. É indubitavelmente o animal mais estúpido do planeta.
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Só o “ser” é válido. Por isso o que aprende a viver com os recursos disponíveis, não se angustia na escassez e não se vende aos poderosos.
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Quando olho as águas da pequena barragem do alto da montanha, espanto-me. Se posteriormente permito que o pensamento interfira, gero prazer ou desagrado.
A beleza está no que é. Na realidade a que não necessitamos de adicionar ou subtrair seja o que for para a tornar mais bela ou menos feia.
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Tantas estrelas no céu profundo, tantas montanhas recortadas pela luminosidade resplandecente da aurora, águas cintilantes, vales verdes de plantas ondulantes, e tanta baixeza, pequenez, farsa, impostura e falsidade.
Há uma alienação generalizada. Falamos de paz, caridade, humildade e multiplicamos as guerras, a ambição, o desejo de poder e a necessidade de prestígio. Dizemo-nos solidários e vamos aperfeiçoando o armamento enquanto milhões morrem por carência dos bens mais elementares. Dizemo-nos desapegados e reacendemos a luta pelos bens materiais minuto a minuto.
Os políticos com as suas gravatas brilhantes, bolsos repletos de influências e patrimónios usurpados, prometem uma sociedade mais justa sem fome e miséria. As suas coniventes damas envergando roupagens de valor avultado, com exuberantes colares e pulseiras angariam fundos para os desfavorecidos. Tantas lágrimas vertidas, tantas palavras derramadas e gestos pseudocaridosos ensaiados em benefício da autocompaixão.
Todos criticam a guerra que mata e estropia inocentes, mas poucos se inclinam para beijar a face das crianças, dos homens e mulheres que nos campos de refugiados aguardam lentamente a morte em segredo para não doer, excepcionando-se obviamente os períodos de propaganda eleitoral.
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Viver no mundo sem ser do mundo, caminhar só na vereda da vida com o abismo à espreita, soltar amarras, içar a vela grande e partir rumo ao nada, sem temer a tempestade nem desejar a calmaria, conscientes de que nenhuma pessoa ou coisa terá o poder de nos dar ou retirar a paz e o amor. Eis o segredo.
No entanto, caminhamos presos em liberdade. Livres para calcorrear estradas, campos, cidades, e presos aos nossos condicionamentos e experiências.
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Na origem não temos pensamentos. O estado que os separa é quietude, silêncio. O silêncio é um estado que transcende a palavra e o pensamento, é a eterna eloquência.
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Quando a mente está despojada porque o pensador já não pensa, há tranquilidade, há paz. Quando está silenciosa, pode então penetrar num mundo que em muito a excede.
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